2012-02-24

O iPad e a preguiça do burocrata

A Folha de São Paulo de hoje deu a notícia da aquisição, pela presidência da república, de tablets com especificações que tornariam o iPad o único concorrente possível na licitação. O problema é, obviamente, a preferência pela marca para um produto que não é o único no mercado, o que seria ilegal. A reportagem da Folha aponta que as especificações do edital da presidência da república são uma cópia das especificações do iPad como estão no site da Apple, inclusive com a mesma ordem de apresentação. Até o suporte para línguas como cherokee e tibetano é exigido!

Como a reportagem da Folha, mesmo na versão para assinantes, é vaga nos detalhes sórdidos, fui atrás do edital completo para verificar as informações. Minha experiência em um setor de licitação de um órgão do executivo sugeria que a informação era plausível e provável. O edital é fácil de achar tanto no Comprasnet quanto no site da presidência (congrats pela transparência).

De fato, a reportagem da Folha estava correta. As especificações são uma cópia verbatim do site da Apple. Compare você mesmo: especificações da Apple vs edital (páginas 15-18). O pregão ocorreu, foi homologado e há até uma proposta da empresa vencedora (foto no final do post). Só não parece que a aquisição ocorreu. não encontrei publicação de extrato de contrato no Diário Oficial e o gasto não consta no Portal da Transparência para 2011 (consultas para 2012 ainda não estão disponíveis).

Mas fiquei ainda mais curioso com o edital, especialmente a justificativa para a aquisição dos tablets. Não discuto o mérito da necessidade da presidência da república ter tablets: são computadores e nem precisam mais de uma justificativa. Burocrata sem computador é como "circo sem palhaço." Mas também sei que essas justificativas podem ser verdadeiras peças cômicas, um blablablá inútil, mal escrito e que ninguém lê. Ou quase.

Uma sentença na justificativa me chamou a atenção:

 "Do ponto de vista da administração pública, os ganhos utilizando esta proposta tecnológica são variados, podendo-se destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." (grifo meu)

"Processamento ao alcance das mãos?" Não soou burocratês típico, mas talvez a parte do anúncio do produto. Meu passadode  professor e um hábito nerd incorrigível me lembraram da velha máxima: "Google is your friend."

Googlei e caí direto num artigo intitulado "Tablets nas organizações", de autoria de Renato Vilela Barbosa e datado de 9/2/2011.

A sentença suspeita do edital é cópia quase ipsis litteris do artigo. Destaquei apenas as diferenças mínimas entre os dois trechos.

"Do ponto de vista das empresas os ganhos utilizando esta proposta de dispositivo são variados, mas podemos destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." - Artigo "Tablets nas organizações"

"Do ponto de vista da administração pública, os ganhos utilizando esta proposta tecnológica são variados, podendo-se destacar alguns como: liberdade de movimento, processamento ao alcance das mãos, além da simplicidade no uso." - Termo de referência do pregão eletrônico 53/2011 da secretaria geral da presidência da república (pág. 15)

Ah, só uma sentença... um descuido, talvez. Não mesmo:

"[...] os tablets podem exercer qualquer atividade projetada para ser executada por um thin-client, como email, elaboração de documentos, apresentações, ferramentas coorporativas entre outras. Vale destacar que grande parte das aplicações das empresas são desenvolvidas para web intranet, o que tornam os aplicativos praticamente adaptados a esta nova tecnologia." - Artigo "Tablets nas organizações"

"Os tablets podem exercer qualquer atividade projetada para ser executada por um thin-client, como email, elaboração de documentos, apresentações, ferramentas coorporativas entre outras. Vale destacar que grande parte das aplicações dos órgãos públicos e empresas, hoje em dia, são desenvolvidas para web intranet, o que tornam os aplicativos praticamente adaptados a esta nova
tecnologia."
- Termo de referência do pregão eletrônico 53/2011 da secretaria geral da presidência da república (pág. 15)

Não surpreendentemente, o burocrata que elaborou o termo de referência parece ter sido preguiçoso, no mínimo. Além de não conseguir elaborar uma justificativa no mínimo parafraseando o artigo de Renato Vilela Barbosa, também não citou a fonte ou desenvolveu minimamente o que chupinhou.

Ainda que não tão grave quanto a cópia das especificações do iPad, que efetivamente direcionaram a licitação, a cópia de uma justificativa trivial é mais uma evidência da relação pobre que alguns burocratas têm com a autoria. Copiar parece ser a norma. A exceção? Gastar uma meia hora pensando ou se dar ao trabalho de citar a fonte.

(Um/a colega me indicou a reportagem da Folha. Como não tive autorização prévia, não o/a cito, mas farei quando e se ele/ela quiser.)




3 comentários:

  1. Não há surpresas nestas atitudes de Ctrl-C/Ctrl-V, pois esta é a máxima reinante nos corredores e salas do poder, o que realmente me surpreenderia seria um alma lúcida ter barrado um edital tão direcionado, será que numa instância tão próxima ao poder maior do Brasil não há uma só personalidade de bom senso? Será que pelo medo imperante de perderem seus DAS´s as pessoas ficam cegas, surdas, mudas e idiotas?

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  2. è vero, a prática do ctrl+c/ctrl+v parece epidêmica e a preguiça do pensar foi globalizada. Cada dia que passa vejo o quanto meu professor tinha razão ao dizer "pensar dói". Já não se dão nem ao mero trabalho de desfaçar ...

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